No dia 20 de
julho de 2011, um jovem tomou um avião para Pamplona,
Espanha. A tentativa de embarque anterior, 6 de
junho de 2011, fracassou. O rapaz teve uma crise de
ansiedade, talvez tenha amarelado, teve medo, somatizou e foi parar no atendimento médico, ali foi
medicado e teve que esperar sua recuperação. Assim
aconteceu e ele pode, enfim, dar início à sua
peregrinação no Caminho de Santiago de Compostela,
na opção do caminho francês.
O contratempo
inicial se deveu ao fato da preparação física
ter sido suficiente, mas a psicológica, não.
É que ele recebeu muitas recomendações dos pais e da
irmã, todos peregrinos de datas anteriores (verão de
1999 e final do outono de 2002, respectivamente), falou
ainda com outros peregrinos veteranos do Caminho,
foi até à associação de peregrinos da cidade, fez
pesquisas, conversou com amigos e parentes sobre sua
peregrinação prestes a acontecer, e o resultado foi
pressão alta, fortes dores de cabeça, fraqueza
geral..., enfim, um grande susto para o jovem forte
e atlético de 28 anos e para toda a família. É que
quase oitocentos quilômetros a pé por trilhas e
caminhos desconhecidos, campos e montanhas, áreas
urbanas e rurais, cheios de misticismo e história,
carregando apenas uma mochila com cerca de 10% de
seu peso corporal, assustam qualquer um.
A chegada a
Pamplona em voo da Iberia com conexão em Madrid foi
às 10 horas do dia 21 de julho, mas ele esperou até às
16 horas para encontrar dois outros peregrinos
desconhecidos da Hungria para repartir a despesa do
táxi. Foram até Saint-Jean-Pied-de-Port, do lado
francês da fronteira. Ali, a peregrinação começaria
e não em Roncesvalles, como era mais provável.
Pernoitou no refúgio municipal inaugural e ali carimbou sua
credencial de peregrino.
O primeiro dia do
caminho foi confuso. Ele esperou no refúgio os
peregrinos húngaros até às 9 horas, mas como eles não
apareciam, percebeu que eles já haviam saído mais
cedo e o haviam deixado para trás; provavelmente,
ele tenha dormido demais e os companheiros não o
quiseram despertar. Ali estava a primeira lição do
Caminho: cada um faz o seu próprio Caminho, ninguém
se deve prender a ninguém, exceto se fizer parte de
um grupo específico.
Ele foi o último do dia a
iniciar a caminhada e tomar o rumo da alta cadeia de
montanhas na fronteira da França com a Espanha. Os
Pirineus são difíceis em qualquer época do ano, mais
no inverno, certamente. Muitos foram os peregrinos
que perderam a vida ali, perdidos e vítimas do mau
tempo que se altera sem prévio aviso ou de
acidentes. É um desafio, uma prova difícil. Quem
vence os Pirineus mostra ter forças para ir até o
fim. Mas, quanto a isso, o filho não sabia, pois era
do tipo desligado, ingênuo. Muitos evitam subir as
montanhas a sós, mas ele as subiu com muita
naturalidade, apenas com sua mochila e sua garrafa
de água. No meio da subida das montanhas ele parou
para descansar um pouco, depois se juntou a um casal
de italianos que passava e seguiu até cerca de 3 km antes do fim da etapa, descansou mais um pouco
e concluiu tranquilamente a descida da etapa até Roncesvalles.
No segundo dia,
em vez de fazer uma etapa de pouco mais de 20 km,
fez logo o percurso correspondente a duas etapas de
uma vez e chegou a Pamplona. Andou cerca de 42 km e, a consequência foi o aparecimento
de bolhas de água nos pés. Mas, isso parece não ter
sido motivo de preocupação.
No terceiro dia,
fez mais um etapa dupla e chegou a Estella. Andou
mais de 46 km, apesar das bolhas de água nos pés,
tratadas com alguns cuidados e ataduras. No dia
seguinte chegou a Los Arcos e dali a Logroño. O
ritmo de caminhada era mais forte que o recomendado
no guia do peregrino.
De vez em quando,
ligava para casa ou para o celular do pai para dar
notícias. Dizia onde estava, falava de como se
sentia e qual seria a etapa seguinte. Estava no
Caminho, seu ritmo de caminhada era médio para
forte e, não raro, pernoitava em qualquer cidade que
tivesse disponibilidade de vagas nos albergues ou
refúgios para peregrinos, sem planejamento ou
preocupação quanto a isso. Assim, pernoitou em Atapuerca,
e dali partiu para chegar em
Burgos, uma bela e grande cidade.
Um certo dia,
ligou de Reliegos. Relatou que havia se perdido, mas
havia mesmo era tomado um caminho alternativo sem saber.
Bateu nele nesse dia o desespero. Contou que depois
de andar vários quilômetros sem nada encontrar pelo
caminho viu umas senhoras ao
longe e gritou o mais forte que pode, elas pararam para esperá-lo e ver o
que estava acontecendo. Ele perguntou onde estava o
Caminho, pois havia se perdido. Elas informaram, com
toda a tranquilidade, que o Caminho estava ali
mesmo, bastava ele tomar a estrada pavimentada que
ali passava e seguir por mais 5 quilômetros até a próxima
cidadezinha onde havia um refúgio de peregrinos.
A confusão foi
devida a duas placas de sinalização indicando
direções diferentes. Sem qualquer critério, o
aprendiz de peregrino decidiu tomar uma das
direções indicadas e aí pensou que tinha se perdido. A culpa foi da
sinalização, segundo ele; mas, em verdade, ele é que
não estava estudando com suficiente atenção o guia
do peregrino que carregava. Isso era bem típico
dele, agir sem muito pensar, mostrando ansiedade. Se
tivesse feito uma leitura atenta do guia teria
visto que ali havia a indicação de um caminho
variante, alternativo, que levava para o mesmo lugar
que tencionava ir.
No dia seguinte,
ligou de novo. Era uma sexta-feira, 5 de agosto, 13 horas em sua
cidade, lá na Espanha já eram 18 horas. Estava em León. Falou com sua mãe
por um bom tempo, até que a ligação via Skype para o
telefone de casa
começasse a falhar. Ele falou que começava agora a
sentir as pernas cansadas e sentir um pouco de
saudade de casa, afinal havia partido há 17 dias. Sua mãe o consolou e disse que o
Caminho era assim mesmo, há momentos de angústia,
solidão, fraqueza e dor, exatamente como a vida é.
Ela pediu que ele perseverasse e não desistisse. Ele
disse a ela que quando vê o quanto já andou, isso
lhe dava força para continuar, pois agora faltavam
"apenas" 306 km até Santiago de Compostela.
De León partiu
para San Martín del Camino, conforme sugeria o guia
do caminho. Era uma etapa de 24 km, menos que a
distância média diária que vinha percorrendo. Assim
ele fez.
Domingo, 7 de
agosto, ele ligou via Internet pelo Skype de Rabanal
del Camino, eram 21 h 35 min. na Espanha. O pai
estava conectado no Skype esperando seu contato
desde aquela manhã. Conversaram via Internet por
cerca de 15 minutos. O filho contou que chegou em Rabanal
após ter partido pela manhã de San Martín del
Camino, portanto, naquele dia, ele havia feito mais uma etapa dupla de 44,4 km. Seguia
caminhando forte, como que alimentado pela energia solar
do quente verão europeu,
parecia provido de células fotovoltaicas que se
autoabasteciam expostas ao sol.
Por suas
palavras, podia-se ver que o novo peregrino da
família estava tranquilo, as últimas etapas haviam
sido
tranquilas, segundo ele disse. Ele também contou que tinha estado conversando com outros
amigos peregrinos da Europa, e eles tinham dado
informações e dicas sobre as etapas à frente,
especialmente, os peregrinos mais velhos, que já
fizeram o Caminho em outras épocas. Ele falou que
tem procurado
diminuir o ritmo e poupar as pernas, mas sua
performance diária não confirmava isso. Em dois dias
andou cerca de 70 km, uma média de 35 km por dia.
Isso tudo no verão, sob temperaturas altas, e alguns
dias de fortes chuvas.
O pai contou-lhe que
leu o relato de um peregrino que, como ele, começou
o Caminho em um ritmo muito forte, mas teve que
parar durante três dias para se medicar e se
recuperar de tendinites que, praticamente, o
imobilizaram. Para evitar que isso ocorresse com
ele, ele deveria reduzir o ritmo, achar um
ritmo mais calmo, aproveitar melhor o tempo nas pequenas
cidades onde chegava, para passear e conhecê-las. Ele disse que
estava fazendo isso e, para evitar tendinites, à noite e
pela manhã, passa unguento nas perdas e, ao chegar do
caminho, deitava com as pernas para cima.
Parece que a
ansiedade e o receio de não ter forças para ir até o
fim do Caminho começavam a passar. Ele demonstrava
mais segurança, parecia ter mais confiança de
que podia concluir a peregrinação, para isso tomava
mais cuidado com a saúde e buscava imprimir um ritmo
de caminhada mais confortável. Parecia estar
mais familiarizado com o Guia do Peregrino que
portava e, finalmente, o usava melhor e com mais frequência.
A
ansiedade e a falta de disciplina, esta um resultado
daquela, já davam sinais de estarem sob algum
controle seu. A sua boa saúde e a força física
tinham superado e
compensado a falta de disciplina até ali. Em Rabanal, restavam 246 km até Santiago.
O pai continuava preocupado com a aparente falta de
compreensão do filho sobre a capacidade que ele
possuía para perseguir um objetivo e agir
para alcançá-lo, mas tinha esperança que o
Caminho o estivesse ajudando a reconhecer e a dosar
suas forças e a se capacitar emocionalmente e
espiritualmente para enfrentar as dificuldades
rotineiras da vida. A fé em Deus e as
situações sempre diferentes a cada dia ganhavam
valor, a medida que o jovem peregrino avançava no
Caminho.
Na quinta-feira,
11 de agosto, ele telefonou de Sarria, aonde havia
chegado após partir de Ponfría, naquela manhã. Na
noite anterior havia pernoitado em Vega de Valcarce,
em um albergue administrado por antigos peregrinos
brasileiros de Minas Gerais. A tentativa de falar
diretamente de computador para computador não deu
resultado devido ao mau funcionamento do equipamento
da lan house de onde ele tentou se comunicar.
O jeito foi apelar para o cartão telefônico e o
telefone público. Ele estava bem. Alegre e animado
contou as novidades, falou sobre os amigos com quem
vinha caminhando as últimas etapas da peregrinação e
os albergues onde havia pernoitado.
Pela primeira vez,
conversaram sobre
a previsão de chegar a Santiago de Compostela, o que
deveria acontecer na
segunda-feira, 15/8/2011, o que significaria
que completaria toda a peregrinação em apenas 25
dias. Ele disse ainda que, como lhe sobraria ainda dez dias até
tomar o avião de volta para casa, estava planejando,
juntamente com alguns outros peregrinos que havia
conhecido no Caminho, ir de Santiago até Finisterre (por
séculos, os romanos consideraram que no farol
de Finisterre ou Finis Terrae acabava a Terra e começava o mistério do
mundo desconhecido). Ali, eles queimariam as roupas que
usaram durante a peregrinação. Isso seria um ritual
que complementaria a peregrinação.
De repente,
porém, o que já era esperado aconteceu: o Caminho
mostrou ao peregrino os limites dele. Na
sexta-feira, 12/8/2011, o telefone tocou às 6 h 30
min. na casa de seus pais. O pai foi quem levantou
da cama para atender. O filho pedia que ele
procurasse o número do voucher do seguro de
assistência à saúde internacional que ele possuía,
pois isso em seu cartão-saúde estava ilegível. O pai
perguntou se eram tendinites, mas ele informou que
passou mau do estômago durante a noite e a
madrugada, teve diarreia e vomitou, talvez, devido a
uma salada pronta que comprou no supermercado e que
havia comido no dia anterior. O pai pediu que ele
ligasse dentro de alguns minutos, pois iria procurar o
número do voucher.
Foi necessário
ligar para a central de atendimento do seguro saúde
para obter a informação de que ele precisava para
ser atendido na Espanha. O pai lhe orientou no
sentido de que ele procurasse um hospital ou posto
de saúde públicos na cidade onde ele se encontrava,
independentemente do atendimento do seguro saúde, e
que bebesse água para evitar a desidratação devido
ao forte calor europeu. Assim, ele disse que faria e
que ligaria mais tarde, depois de ser medicado.
Por volta das 14
horas, o telefone voltou a tocar na casa de seus
pais, desta vez, foi a mãe que o atendeu. Ele contou
que já tinha tido a assistência médica, mas teve que
ir de ônibus até a cidade de Lugo, que ficava cerca
de meia hora de Sarria, a cidadezinha onde havia
passado a noite anterior - posteriormente, o pai viu
no mapa que Lugo não estava no roteiro do Caminho de
Santiago, mas um pouco mais ao Norte. Ele já havia
sido muito bem atendido por uma médica, a qual não
prescreveu nenhum medicamento, apenas pediu que ele
descansasse por dois dias, e ao voltar a caminhar,
evitasse fazê-lo durante as horas mais quentes do
dia, entre 11 h 30 min. e 13 h 30 min. Portanto, ele
iria aguardar até domingo para retomar a
peregrinação.
A mãe ficou mais
aliviada com as informações que ele havia dado, mas
não pode passar-lhe outras orientações
complementares porque a ligação telefônica caiu e
ele não voltou mais a ligar. As novas informações
foram transmitidas pela mãe ao pai, que se encontrava no
trabalho, àquela hora. Seus pais, então, fizeram suas orações de
agradecimento a Deus pelo atendimento e pela
recuperação da saúde do filho... e aguardariam seu
próximo contato.
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